Radicalidades de superfície
Uteropias procura pensar as raízes não apenas como fonte arquetípica de um passado uterino mas como afloramentos no presente – quais trepadeiras dançantes! – que produzem perturbações no solo em que caminhamos, tendo a utopia no horizonte.
Esta exposição resulta de um processo iniciado num workshop, orientado por mim, onde participaram a equipa da galeria Kubik – Marta Rodrigues, Rita Castro e João Azinheiro – mais dois artistas convidados: Catarina Real e Luís Ramos. Este encontro colaborativo teve como principal escopo posicionar o grupo de trabalho em torno da tarefa, tão complexa quanto íntima, de representar através de uma linguagem plástica recordações remotas e significantes. Como desfecho dessa situação experimental surgiu no chão da galeria um lastro de aparições realizadas sob fragmentos de coisas insignificantes e precárias com um profundíssimo valor simbólico. A partir deste desenho iniciático geraram-se delicadas decisões de escolha individual sobre obras específicas de artistas representados no acervo da galeria que de uma forma secreta – porventura que a razão desconhece – se religavam com essa matéria sensível advinda dos mecanismos de recordação. O workshop despoletou ainda dois novos processos de criação – “Fétiche” e Spooning de Luís Ramos e a minha instalação Escuto o calcanhar do pássaro, assim como a selecção de um projecto iniciado em Março de 2020 por Catarina Real intitulado Desenhos Desatentos. Estes trabalhos são agora apresentados enquanto “coexistências afectivas” com os trabalhos seleccionados do acervo.
O início da exposição é um buraco negro. O olhar entra na exposição diretamente para um abismo escuro, uma atmosfera pictórica sombria de Sérgio Fernandes. To an unknown God captura a nossa visão para instalar o olhar naquele que olha sem ainda perceber, nomear ou articular com a linguagem. E se se der uma segunda oportunidade, não apenas à imagem, nem sequer ao olhar, mas à própria visibilidade, resgatamos pequenas percepções de luz dentro deste infinitamente escuro. A sensação de uma mancha de luz irrompe do breu como subtis fosfenos que aparecem no campo de visão quando esfregamos as pálpebras.